terça-feira, 18 de abril de 2017

As colónias enquanto regiões autónomas (2.ª parte)


4. As regiões autónomas e os constitucionalistas
Não foi a invocada falta de tempo (de transição) que prevaleceu no debate entre André Gonçalves Pereira, Jorge Miranda e Miguel Galvão Teles, discípulos académicos de Marcelo Caetano, para os quais foi precisamente com as rupturas que a revisão constitucional de 1971 revelou e (não) trouxe que, quanto à evolução política tanto nas colónias como em Portugal, «as coisas acabaram», a ocasião foi «perdida»[1]. E Jorge Miranda, embora não aprofundando, também veio considerar bastante duvidoso ter por correcta, mesmo juridicamente, a qualificação das províncias ultramarinas como regiões autónomas e serem patentes, em qualquer caso, as diferenças com o regime constitucional da autonomia posteriormente criado na Constituição de 1976 para os Açores e a Madeira[2].   
Na época, a maioria dos constitucionalistas foram críticos, exceptuando a surpreendente, variada e «melhor colaboração» prestada pelo ex-integracionista ferrenho Afonso Queiró, catedrático da Faculdade de Direito de Coimbra[3], e a singular opinião negativa de Adriano Moreira.
Segundo Armando Marques Guedes – antigo assistente de Marcelo Caetano e regente da disciplina de Direito Constitucional na Faculdade de Direito de Lisboa, professor catedrático no ISCSPU (Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina) com trabalho sedimentado sobre a questão –, não se poderia, no caso, aludir a descentralização política nem mesmo a descentralização legislativa ou a legislação descentralizada. O Estado regional, como fórmula de compromisso ou de transição, tanto poderia assumir a estrutura de um Estado composto (se adoptasse a descentralização politica e legislativa, o que implicava a ausência de tutela), como a de um Estado unitário (se se limitasse à fórmula da desconcentração de poderes). No caso português – visto que a solução adoptada pela revisão constitucional, no campo político, legislativo e executivo, se centrava na vinculação hierárquica perante o Ministro do Ultramar –, tratava-se de criação um Estado regional como desconcentração: só uma parte dos poderes de comando e decisão era concedida aos órgãos territoriais pois os órgãos centrais conservavam a faculdade de revogar os actos por eles praticados. Em consequência e no plano de princípios, a pedra de toque da construção assim erguida estava na fiscalização da constitucionalidade e, sobretudo, da constitucionalidade orgânica, cujo órgão central (e do modelo de fiscalização concentrada) era, desde há muito, o Conselho Ultramarino[4].
Também desenvolvido – e iniciado nos seus tempos de estudante – foi o ensaio de Fausto de Quadros, então assistente no ISCEF (Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras), de Lisboa. O trabalho – um estudo exclusivamente jurídico, de direito constitucional e administrativo, invoca o autor – foi concluído e publicado ainda antes da aprovação da lei de revisão mas beneficiou do conhecimento do Parecer da Câmara Corporativa[5]. Para Fausto de Quadros, a alteração fundamental estava na qualificação das províncias ultramarinas como regiões autónomas; ora, estas eram inequivocamente parcelas integrantes de um Estado unitário, pelo que mais não eram que «partes de um todo que é o Estado unitário português». Recorrendo ao direito comparado, constatava que tanto pela Constituição da República espanhola de 1931 como pela Constituição italiana de 1947 as regiões elaboravam os seus Estatutos –   sujeitos à posterior aprovação do Poder Central, mais precisamente dos órgãos legislativos nacionais –, e eram também elas a escolher os órgãos de governo próprio, um legislativo (com ampla competência) e um executivo (deste dependente). Estes elementos faltavam no caso português. Apesar disso – acrescentava –, por não existir  um conceito técnico-jurídico de “região”, não se poderia dizer estar aceite e cristalizado um conteúdo mínimo e específico, de modo a autonomizá-lo dentro do comum das colectividades descentralizadas no seio de um Estado unitário. Tratava-se, consequentemente, de um princípio maleável e susceptível de várias concretizações. Ou seja, só a próxima futura revisão da Lei Orgânica do Ultramar poderia desvendar «se «alguns indícios do princípio federalista» que a autonomia regional comportava poderiam ser considerados relevantes como «sintomas de uma futura estrutura composta do Estado português» ou não passariam de meras imperfeições técnicas do legislador[6]. Se tivesse revisto e aumentado este seu trabalho, Fausto de Quadros por certo concluiria que a Lei Orgânica do Ultramar aprovada no ano seguinte (1972) comprimira toda a (eventual) autonomia, ficando-se o estatuto constitucional de região autónoma pela mera “imperfeição técnica do legislador”.
Lucas Pires – à época, assistente de Direito Constitucional na Universidade de Coimbra e líder do grupo radical caracterizado pelas suas posições de “terceiro-mundismo nacionalista e revolucionário”[7]– apresentou uma primeira intervenção pública ainda no decurso do processo de revisão num colóquio por ele dirigido nas instalações da Cooperativa Cidadela de Coimbra[8]. Sobre o essencial da proposta de revisão, descortinava duas opiniões: havia quem (“da esquerda”) dissesse estar-se perante uma renovação ideológica (por contraponto à manutenção do processo de designação do Chefe do Estado, que constituía alicerce da permanência), pois as alterações propostas seriam mais de carácter doutrinário do que organizativo; outra versão (“situacionista”) pretenderia não se tratar senão duma alteração de métodos administrativos no sentido de uma maior agilidade e autonomia dos órgãos de governo do Ultramar[9]. Em sua opinião, da proposta de revisão poderiam retirar-se três teses: i)- o Governo mostrava conhecer a existência de alternativas sobre a ideologia ou o sentido e os métodos de governo do Ultramar e querer criar as possibilidades de uma opção ou orientação em qualquer sentido; ou seja, tratava-se duma evolução da política ultramarina, não duma revolução, ainda que pacífica e paulatina[10]; ii)- esta amplitude poderia, no entanto, criar «a vertigem da autonomia pura e simples» cujo resultado seria «imprevisto e violento»[11]; iii)- portanto, seria aconselhável introduzir  um mecanismo regulador, que tanto poderia  consistir  no enraizamento de uma mesma força política nacional, activa e poderosa, em todo o território, como no reforço da autoridade legal ou real do Chefe do Estado ou ainda na criação de um Tribunal Constitucional encarregado de zelar permanente e oficiosamente, pela observância dos princípios mínimos de unidade e permanência política [12]. Estas teses serão aprofundadas, após aprovação da lei de revisão, nomeadamente através da caracterização do Estado regional como «eventual fórmula liberal de desempate» entre o Estado unitário e o Estado federal, num estudo que Lucas Pires realizou no programa de trabalhos do grupo de investigação de Direito Público da Faculdade de Direito de Coimbra[13].
Adriano Moreira – que em Julho de 1969 fora demitido de director do curso de Serviço Social, mas mantinha a sua actividade docente no ISCSPU, ainda que afastado da Direcção – publicou, no decurso do processo de revisão, um curto estudo, começando por distinguir entre revisão (que só deveria emendar) e reforma (que implicaria a possibilidade de tocar em valores fundamentais)[14]. Destacando o aparecimento de novas expressões, chamava a atenção para o facto de nos antecedentes regionalistas francês e italiano – onde não havia problemas de pluralismo étnico, religioso e cultural nem dispersão geográfica nem guerra exterior – «a paz civil viu-se posta em causa e a unidade nacional em suspeita». Por sua vez, para ele, invocar a designação Estado como meramente semântica era não só «demasiado afoito» como «ambíguo» – e a ambiguidade mostrava «um primeiro sintoma da doença». Acrescia que as palavras novas não correspondiam a uma nova política, não passando de um «crisma». Assim, concluía negativamente que puseram em causa «a credibilidade do desígnio nacional. Afectaram a afirmação da unidade política. Tocaram na imagem interna e internacional». Ou seja, para Adriano Moreira, a revisão constitucional fora uma reforma que revogava “o conceito estratégico nacional” e o Governo, através dela, desistia «discretamente da missão nacional»[15]. Ora, em sua opinião, em vez de rever e reformar, bastava executar as normas que já existiam, prosseguindo efectivamente um «institucionalismo comparticipante», como expressão de uma «autonomia reconhecida com autenticidade»[16]. Em escritos posteriores revelou-se ainda mais acutilante: a revisão revogara «clandestinamente» o conceito estratégico nacional do título VII da Constituição, sem o explicar nem substituir por qualquer outro, e fora sobretudo adoptada «por necessidades de lógica normativa da nova imagem procurada»[17]. Sugeria ainda que a ambiguidade que rodeava a política ultramarina do Governo tinha um importante antecedente: o documento que aparecera aquando do Plenário do Conselho Ultramarino, em 1962, através do qual Marcelo Caetano «propunha uma solução federal, sem qualquer fundamento»[18]; aliás, Adriano Moreira foi oficiosamente chamado a intervir sobre «o alcance federalista da proposta governamental» e «o pensamento antigo do Primeiro-Ministro», a propósito do teor do Parecer da Câmara Corporativa, por divergências entre o relator, Afonso Queiró (que procurava «impedir que no texto da proposta ficassem imperativos e sinais muito salientes da concepção federalista»), por um lado, e, por outro, alguns deputados e o procurador Antunes Varela (críticos da proposta governamental)[19].
 Finalmente, duas opiniões de constitucionalistas mais recentes.
Marcelo Rebelo de Sousa contrapõe expressamente a revisão de 1971 ao sentido da revisão de 1959 – que consagrara o princípio da integração da organização político-administrativa das províncias ultramarinas no regime geral da administração. No entanto, classifica o novo regime ultramarino de «resposta política tímida e hesitante», atacada à direita e à esquerda do Governo[20].
 Paulo Otero, num relatório de mestrado no âmbito da disciplina de Direito Constitucional sobre o pensamento constituinte português, preparado no ano lectivo de 1986-1987 e editado em 1990, faz uma apreciação sistemática do estatuto das regiões autónomas segundo a revisão de 1971[21]. Sustenta que a revisão procurava estabelecer o fundamento de uma nova fase do princípio unitarista, “o unitarismo autonómico», pois atendia-se às diferenciações regionais no âmbito da política de integração. A exposição começa por ser, basicamente, técnica. As regiões autónomas integrar-se-iam num processo de descentralização político-administrativa, mediante um reforço da competência legislativa e da autonomia financeira-orçamental e de criação de órgãos próprios. No entanto, como já se referiu acima, não eram titulares de um poder político próprio e o Estado em que se integravam não perdia o seu caráter unitário. Assim, a criação das regiões autónomas na revisão de 1971 não afectava a integridade e a unidade da soberania do Estado e o principal limite à autonomia regional encontrava-se na faculdade dos órgãos de soberania revogarem ou anularem os diplomas regionais[22]. Numa opinião mais pessoal, para Paulo Otero a ideia de continuidade nesta revisão constitucional procurava justificar-se num triplo fundamento: i)- a autonomia regional seria uma realidade anterior à proposta de revisão; ii) a concepção evolutiva de autonomia corresponderia ao pensamento de Salazar; e iii)- integração e autonomia não eram concepções opostas mas conciliáveis. Quanto a ele, o segundo fundamento não parecia procedente[23]. Não vai mais longe.

António Duarte Silva






[1] In Manuel Braga da Cruz e Rui Ramos (org.), Marcelo Caetano – Tempos de Transição, Porto Editora, 2012, pp. 192/194.


[2] Jorge Miranda, Manuel de Direito Constitucional, Tomo III, 3.ª edição, Coimbra Editora, 1996, p. 286.


[3] Entre outras, sua carta de 8 de Agosto de 1971, in José Freire Antunes (org.), Cartas Particulares a Marcello Caetano, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1985, p. 50


[4] Armando Marques Guedes, “A unidade política nacional e a autonomia das províncias ultramarinas”, in AAVV, Estudos de Direito Público em Honra do Professor Marcello Caetano, Lisboa, Edições Ática, 1973, pp. 139 e segs.


[5] Fausto de Quadros, A descentralização das funções do Estado nas Províncias Ultramarinas Portuguesas, Braga, Livraria Cruz, 1971 (Separata da revista Scientia Juridica), pp. 114 e segs.


[6] Ibidem, p. 125


[7] Riccardo Marchi, Império, Nação, Revolução, Alfragide, Texto Editores, 2009, pp. 278 e segs.


[8] Francisco Lucas Pires, O Ultramar e a Revisão Constitucional, Coimbra, Sociedade Cooperativa Cidadela de Coimbra, 1971.


[9] Ibidem, pp. 9/12.


[10] Ibidem, pp. 13 e 17


[11] Ibidem, p. 15


[12] Ibidem.


[13] Francisco Lucas Pires, “Soberania e Autonomia”, in Boletim da Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra, Vol. XLIV, 1973, pp. 135 a 200, e Vol. L, 1974, pp. 107 a 174.


[14] Adriano Moreira, Revisão Constitucional, Lisboa, s. n., 1971, p. 5 (trata-se de um artigo destinado a publicação, apenas, nos periódicos Notícias da Beira, de Moçambique, e Prisma, de Angola). Ver também a sua entrevista a Amélia Neves de Sousa, Caetano e o ocaso do «Império» - Administração e Guerra Colonial em Moçambique durante o Marcelismo (1968-1974), Porto, Edições Afrontamento, 2007, p. 65.


[15] Adriano Moreira, Revisão Constitucional, cit., pp. 11/12.


[16] Ibidem, p. 13.


[17] Idem, “O último plenário do Conselho Ultramarino”, in Notas do Tempo Perdido, Matosinhos, Contemporânea Editora, 1996, p. 45. Também, e mais desenvolvido, idem, “Prefácio” a Silvino Silvério Marques, Portugal – e Agora?, Lisboa, Edições do Templo, 1978, pp. 17/20.


[18] Idem, A Espuma do Tempo – Memórias do Tempo de Vésperas, Coimbra, Almedina, 2008, p. 356.


[19] Ibidem, pp. 365/366.


[20] Marcelo Rebelo de Sousa, “”Da crispação institucional ao equilíbrio instável de poderes”, in António Reis (dir.), Portugal Contemporâneo, Volume V, Lisboa, Publicações Alfa, 1989, pp. 68/69.


[21] Paulo Otero, “A concepção unitarista do Estado na Constituição de 1933”, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Vol. XXXI, 1990, pp. 458 e segs


[22] Ibidem, pp. 466/467.


[23] Ibidem, p. 469.




Sem comentários:

Enviar um comentário